“Eu fui um dia rainha
e o meu reino se estendia
do quarto até a cozinha,
mas depois foi restringido:
em vez de amante, o marido,
em vez de gozos, extratos.
Agora nem isso tenho
Apenas restam-me os pratos.”
Leila Míccolis
O relógio já apontava 02:55h, o telefone dele estava fora de área. Ela colocou uma música clássica pra relaxar, ouvia o tradicional Nocturne de Fréderic Chopin. Fez um chá de camomila com passiflora para tentar se acalmar. Ela já estava acostumada com seus atrasos, mas dessa vez já estava demasiadamente tarde, não sabia o que fazer... Esse homem fora a pessoa a qual escolheu para viver o resto de seus dias, amando-o e respeitando-o, jamais pensou diferente. A casa estava limpa e arrumada, com cheiro de lavanda. Olhou e averiguou mais uma vez para saber se tudo estava no lugar, pois ele sempre exigiu organização.
O jantar já estava frio, tinha feito a mesma receita de toda sexta-feira: Macarrão à bolonhesa. Esquentou novamente na esperança dele chegar a qualquer momento. Olhou pela janela de seu apartamento antigo de um bairro do subúrbio do Rio. Já não havia mais ninguém na rua, pois já era madrugada. O céu estava cinza, parecia que ia chover. Enfim, o carro dele apontou no final da rua, e seu coração finalmente se acalmava.
Ele abriu a porta e foi logo tirando a gravata. Com os sapatos sujos, entrou na sala, sem ao menos reparar que a casa estava impecável. A essa altura, o Nocturne de Chopin já não tocava mais. Ela estava no sofá, ninguém dizia nada, e o silêncio, que durou dez segundos, parecia durar uma eternidade. Ele, talvez por pena, abriu um sorriso amarelo, tentou puxar um assunto. Ela, com o olhar perdido, respondeu com poucas palavras. Nesse momento ela se perdia em pensamentos, e pela primeira vez questionou: “Será que foi isso que eu sonhei?”
Foi quando de repente, num golpe de olhar, ao sair do torpor que aquela situação a colocara, avistou na camisa branca dele, na altura do pescoço, uma mancha cor de carmim, era um beijo. Nesse momento, uma lágrima quase imperceptível caiu de seus olhos, sem que ele pudesse perceber. Aquele que estava a sua frente fora um dia seu príncipe, seu rei e agora já não tinha mais esta certeza. Ela então sorriu sem graça, nada aconteceu, apenas levantou do sofá e seguiu até a cozinha, para servir o jantar tardio.
Serviu a refeição a ele, e, enquanto isso, ela tomou mais uma xícara do chá que houvera feito. Ele comia em silêncio e ela o olhava. Aquele borrão de batom, que antes a fizera chorar agora já não a incomodava tanto, apenas pensava no que deveria usar quando fosse lavar a roupa, para tirar aquela mancha. Ela esperava ao menos um elogio, a comida está boa... Mas ele deu duas garfadas e logo disse estar sem fome.
Saíram da cozinha e foram em direção a sala novamente. Ele parecia estar exausto. Sentou no sofá, ligou a televisão e logo pegou no sono. Ela o olhava, naquele sono profundo... Olhava e tinha a certeza que ele não estava mais ali. Era apenas um corpo cansado a se recuperar de “um longo dia de trabalho”. Ela então ali ficou, ninguém sabe por quanto tempo. Ainda sentia um enorme carinho por ele, mas naquele momento teve a certeza que era só isso. Quando caiu em si do que estava a pensar, levantou-se sorrateiramente e foi até a cozinha, pois ainda tinha a louça do jantar na pia para lavar...